13.6.08

um post gigante para duas coisas foda

Duas coisas que li essa semana confirmam minha opinião de que, pra escrever decentemente o cara tem que ter experiência de vida e olho crítico sobre o cotidiano.
Primeiro foi a parte I de A SOMA DE TUDO, do MUTARELLI.
Em Lisboa, o grande Diomedes mostra um lado mais sentimental da sua pessoa freak, possivelmente inspirado pela “cidade da saudade” e pelo momento infeliz que o Lorenzo estava passando na época, com a morte do seu pai, grande inspirador do Diomedes.
Continua doente, mas tem ali um certo arrependimento da loucura, uma vontade de ser amado. Mesmo nos gráficos, nos detalhezinhos mais detalhados dessa vez, dá pra ver ali um outro tipo de sofrimento, menos umbiguista, mas não menos sofrido.
To ansiosa pra ler logo a segunda parte.

No ano que vem saem duas novas adaptações do Mutarelli para o cinema. Descobriram finalmente o quanto o cara escreve.
Uma delas, O NATIMORTO, vai ter o próprio atuando ( no papel de si próprio??? Ele diz que não, mas....) o que já é um ponto a favor.
A história é perfeita pra cinema, claustrofóbica, focada no personagem, em pequenos tormentinhos.
A adaptação do Bortolotto para o teatro ficou foda, talvez porque ele também use a seu favor os elementos cinematográficos.


A outra uma adaptação é para O DOBRO DE CINCO, a primeira parte da trilogia .
Pela cara das prévias no site (aqui) eles foram fiéis ao clima burlesco da história.
E botar o Cacá Carvalho no papel do Diomedes foi uma puta sacada. Melhor que ele, só o José Lewgoy.
Vai estrear em 2009.



A outra coisa que eu li foi isso aqui em baixo. Nesse caso acho que nem preciso me estender nessa balela de cotidiano + olhar crítico. Sem mais, um dos contos de “Angu de Sangue”, do Marcelino Freire.
O cara sabe!


Muribeca


Lixo? Lixo serve pra tudo. A gente encontra a mobília da casa, cadeira pra pôr uns pregos e ajeitar, sentar. Lixo pra poder ter sofá, costurado, cama, colchão. Até televisão.É a vida da gente o lixão. E por que é que agora querem tirar ele da gente? O que é que eu vou dizer pras crianças? Que não tem mais brinquedo? Que acabou o calçado? Que não tem mais história, livro, desenho?E o meu marido. O que vai fazer? Nada? Como ele vai viver sem as garrafas, sem as latas, sem as caixas? Vai perambular pela rua, roubar pra comer?E o que eu vou cozinhar agora? Onde vou procurar tomate, alho, cebola? Com que dinheiro vou fazer sopa, vou fazer caldo, vou inventar farofa?Fale, fale. Explique o que é que a gente vai fazer da vida? O que a gente vai fazer da vida? Não pense que é fácil nem remédio pra dor de cabeça eu tenho. Como vou me curar quando me der uma dor no estômago, uma coceira, uma caganeira? Vá, me fale, me diga, me aconselhe. Onde vou encontrar tanto remédio bom? E esparadrapo e band-aid e seringa?O povo do governo devia pensar três vezes antes de fazer isso com chefe de família. Vai ver que eles tão de olho nessa merda aqui. Nesse terreno. Vai ver que perderam alguma coisa. É. Se perderam, a gente acha. A gente cata. A gene encontra. Até bilhete se loteria, lembro, teve gente que achou. Vai ver que é isso, coisa da Caixa Econômica. Vai ver que é isso, descobriram que lixo dá lucro, que pode dar sorte, que é luxo, que lixo tem valor.Por exemplo, onde a gente ai morar, é? Onde a gente vai morar? Aqueles barracos, tudo ali em volta do lixão, quem é que vai levantar? Você, o governador? Não. Esse negócio de prometer casa que a gente não pode pagar é balela, é conversa pra boi morto. Eles jogam a gente num esgoto. P’ronde vão os coitados desses urubus? A ca-chorra, o cachorro?Você precisa ver. Isso tudo aqui é uma festa. Os meninos, as meninas naquele alvoroço, pulando em cima de arroz, feijão. Ajudando a escolher. Agente já conhece o que é bom de longe, só pela cara do caminhão. Tem uns que vêm direto de super-mercado, açougue. Que dia na vida a gente vai conseguir carne tão barata? Bisteca, filé, chão-de-dentro – o moço ta servido? A moça?Os motoristas já conhecem a gente. Tem uns que até guardam com eles a melhor parte. É coisa muito boa, desperdiçada. Tanto povo que compra o que não gasta – roupa nova, véu, grinalda. Minha filha já vestiu um vestido de noiva, até aliança a gente encontrou aqui, num corpo. É. Vem parar muito homem morto, muito criminoso. A gente já ta acostumado. Quase toda semana o camburão da polícia deixa seu lixo aqui, depositado. Balas, revolver 38. a gente não em medo, moço. A gente é só ficar calado.Agora, o que deu na cabeça desse povo? A gente nunca deu trabalho. A gente não quer nada deles que não esteja aqui jogado, rasgado, atirado. A gente não quer outra coisa senão esse lixão porá viver. Esse lixão pra morrer, ser enterrado. Pra criar os nossos filhos, ensinar o nosso ofício, dar de comer. Pra continuar na graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Não faltar brinquedo, comida, trabalho.Não, eles nunca vão tirar a gente deste lixão. Tenho fé em Deus, com a ajuda de Deus, eles nunca vão tirar a gente do lixo. Eles dizem que sim, que vão. Mas não acredito, eles nunca vão conseguir tirar a gente deste paraíso.
Marcelino Freire, em Angu de Sangue

3 comentários:

Anônimo disse...
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Anônimo disse...

aaahhhh... vc sabia que o Mau tá trabalhando no "Dobro de Cinco", né??
Depois vou pedir pra ele te mandar umas imagens... se é que já pode... hehehe... bjoossss

lee disse...

ahhh!!! mas que fino esse mauricio!! me enche de orgulho!